Correio dos Campos

O confinamento

* Por Daniel Medeiros - Doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo
15 de abril de 2020 às 18:21
(Foto: Divulgação)

No dia 6 de julho de 1942, Anne Frank e sua família esconderam-se dos nazistas nos fundos de uma fábrica em Amsterdã. Ficaram escondidos até serem delatados e descobertos, em 4 de agosto de 1944. Anne tinha quinze anos quando foi presa e deportada para um campo de concentração, onde morreu.

Muita gente conhece Anne Frank por causa do diário que ela deixou, relatando o cotidiano do refúgio e a convivência com sua irmã, pais e membros de duas outras famílias que dividiam as agruras do confinamento e o temor constante de serem descobertas. Anne descreve sobre esses longos dias, meses, anos, e também reflete, imagina, sonha. É o retrato de uma jovem inteligente em uma situação absurda. Marcada por várias dúvidas, angústias, momentos de raiva e incompreensão, mas, principalmente, pela certeza de que tudo continuaria: a escola, as amizades, o futuro, uma profissão. O confinamento era apenas um momento ruim na vida da jovem e de sua família. Mas, infelizmente, não foi assim. Apenas o pai, Otto, sobreviveu aos campos. E foi ele o responsável pela publicação dos diários da filha, em 1947.

Muitas histórias com a de Anne e sua família ocorreram na Europa durante o horror fascista. Mas também, e certamente, em muitos outros regimes autoritários que escolheram etnias, religiões ou ideologias como inimigos e os perseguiram. Lembro-me, por exemplo, de um documentário de 2014, chamado “A Imagem que falta”. Nele, o diretor, Rithy Phan busca relatar suas memórias e, por meio delas, trazer seu testemunho sobre o que aconteceu com seu país, o Camboja. Ele tinha 13 anos quando Pol Pot chegou ao poder, iniciando um período de terror que deixou poucas imagens mas muitos traumas. Rithy Phan se vale de bonecos de massinha para reencarnar suas memórias, permitindo ao público ver através, imaginar, e não apenas chocar-se com a realidade terrível vivida pelo povo cambojano.

Um artifício que o escritor Jorge Semprun, outro sobrevivente dos campos nazistas, traduziu da seguinte maneira: “há histórias que não são apenas difíceis de contar. São difíceis de se acreditar que puderam ser vividas”. Nesse caso, a arte assume um papel fundamental, ao permitir um acesso mais profundo da memória e um sentimento que capta mais amplamente o que de fato foi vivido, por mais inacreditável que seja.

A obra de Anne Frank tornou-se um fenômeno mundial e também ganhou as telas dos cinemas. Um curioso sucesso que só se explica pela nossa capacidade de vivermos a dor dos outros, esse sentimento que Rousseau identificava nos homens desde o estado de natureza: a compaixão.

Em todas as situações nas quais nossa liberdade é obstada, há sofrimento e, ao mesmo tempo, solidariedade. Dois fenômenos siameses, tão próprios de nós, embora quase sempre a dor é também causada por pessoas como nós. E aí que vem a perplexidade: por que há tantas pessoas que estabelecem como visão utópica um lugar despovoado da diferença? Essa atração pelo que parece o mesmo, pelo que já se conhece, pelo que não traz surpresas, está entranhado em nosso espírito humano tanto quanto a comiseração, a empatia, o reconhecimento da diferença. E a História vai registrando esse balanço de dor e esperança, de violência extrema e anulação do outro e atitudes heróicas, desprendidas, captadas pela arte de um diário, pela lente e imaginação de um sobrevivente.

Creio que não mudaremos como espécie, mas podemos aprender como indivíduos e ensinar os outros. Pois cada esconderijo, cada fuga, cada pavor diante de outro ser humano que quer nos ver mortos porque somos diferentes, agimos diferente ou pensamos diferente, é uma vitória da caverna e dos que projetam sombras em seu fundo.