Correio dos Campos

Imunidade Parlamentar

*Por: Daniel Medeiros - Doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
24 de março de 2021 às 19:04
(Foto: Divulgação)

Na manhã de 29 de agosto de 1968, tropas da polícia militar e do Exército invadiram a Universidade de Brasília, agredindo muitos estudantes dentro das salas de aula. A justificativa era a perseguição a Honestino Guimarães, presidente da Federação dos Estudantes Universitários de Brasília, e outras sete lideranças estudantis. Sem encontrá-los, os militares reuniram centenas de estudantes na praça central do campus e muitos foram espancados. Um deles levou um tiro na cabeça. Milagrosamente, sobreviveu. Muitos professores e funcionários, indignados com a violência, reagiram e também foram agredidos. Honestino, estudante de Geologia, acabou preso. A cena, ou as cenas, eram inimagináveis, pela violência, pela covardia e pelo rompimento de um tratado tácito que vinha desde o fim da Idade Média: o de que o campus universitário é um lugar onde a polícia não entra. Mas não havia tradição que os militares não pudessem romper, desde que fosse para “restaurar a ordem”. A ordem, essa herança positivista aprendida pela metade, pois que deveria ter o “amor por base”. Mas, enfim.

Poucos dias depois, o jornalista, advogado e deputado federal, Márcio Moreira Alves, ganhador do prêmio Esso aos 21 anos de idade, assessor do Ministro das Relações Exteriores San Tiago Dantas, eleito aos trinta anos de idade deputado federal pelo MDB, aproveitou a hora do almoço, quando a Câmara fica praticamente vazia, para proferir discursos contra os agressores da UNB. Fez o primeiro discurso no dia 2 de setembro e ainda outro no dia 3. Neste, disse: “vem aí o 7 de setembro. As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse que a presença de seus filhos nesse desfile é um auxílio aos carrascos que os espancam e metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicotasse esse desfile”. E emendou: “esse boicote pode passar também às moças que dançam com os cadetes e namoram jovens oficiais (…) Discordar em silêncio pouco adianta”.

A reação veio rápida. Não dos deputados que sequer notaram ou mesmo souberam da provocação. Mas dos militares “imbrocháveis”, furibundos com a proposta de boicote inspirado na peça de Aristófanes, Lisístrata, na qual as mulheres atenienses fazem uma greve de sexo para acabar com a Guerra do Peloponeso. O Ministro do Exército, Lyra Tavares, exigiu que fossem tomadas medidas legais contra o que considerou “agressões verbais injustificáveis contra a Instituição Militar”.

No dia 12 de dezembro ocorreu a votação para saber se a Câmara dava ou não licença para cassar o deputado, quebrando assim a sua imunidade parlamentar. O partido do governo, a ARENA, era amplamente majoritário, mas, mesmo entre os seus parlamentares, havia o temor de que punir Márcio Alves por um discurso que era quase uma zoação, além de muito merecido diante da violência crescente das Forças Armadas contra a população e, particularmente, contra os estudantes, abriria um caminho sem volta e não haveria mais limite para definir o que seria crítica ao governo e o que seriam “agressões verbais injustificáveis”.

O próprio Moreira Alves conta como terminou essa sessão da Câmara, já pela madrugada: “não esperei as comemorações da vitória. As últimas estrofes do Hino Nacional ainda ecoavam no plenário emocionado e eu encerrava o curto período em que a minha vida coincidiu com a vida política da minha Pátria (…) Saí da Câmara pelo corredor da biblioteca e entrei no carro de um amigo que me levaria para os caminhos da clandestinidade e, depois, para os do exílio”.

No dia seguinte, 13 de dezembro, uma sexta feira, o presidente Costa e Silva, junto com o Conselho de Segurança Nacional, editou o Ato Institucional número 5, fechando o Congresso, entre outras medidas autoritárias. A ditadura escancarou-se. Não precisavam mais de licença ou explicação para espancar e prender. O AI-5 não tinha prazo para expirar.

No dia 14, o Jornal do Brasil, em letras minúsculas, no espaço destinado a falar da meteorologia, escreveu: “tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos”.