Correio dos Campos

Idosos que se curaram da Covid-19 são esperança no combate à doença

Mesmo fazendo parte do grupo de alto risco, eles mostraram que a idade não é determinante. E a genética pode ser uma das respostas para esses casos. Uma pesquisa em andamento na USP quer identificar quais genes explicam essa resistência e quais são os suscetíveis para o coronavírus
10 de setembro de 2020 às 14:42
Maria José Bastos (Foto: Gabriel Lobo / SECTI)

Era 3 de setembro, um dia de sol e calor típicos do inverno carioca em Jacarepaguá, e Maria José Bastos tirava um cochilinho depois do café da manhã. No dia seguinte faria exatamente dois meses que tinha saído do hospital e se curado da Covid-19. Aos 100 anos, Maria José, paraibana de Campina Grande, vencia as estatísticas e o coronavírus.

Ela foi levada pelo SAMU no fim de maio para uma unidade de pronto-atendimento, depois de sentir cansaço e dificuldade de respirar – sintomas iniciais da doença. No mesmo dia, foi encaminhada para o Hospital Universitário Pedro Ernesto, na zona norte do Rio, onde ficou internada por 13 dias. Precisou de oxigênio, mas não foi entubada. O filho Antônio, com quem morava há mais de 20 anos, também foi internado, mas não resistiu e morreu dez dias depois. Ao sair do hospital sob aplausos, Maria José perguntou por ele. Sua outra filha, Expedita dos Santos Silva, não teve – e ainda não tem – coragem de dizer a verdade. “Ele deve ter ido para a Paraíba, mãe. Logo está de volta”, é o que responde sempre que a pergunta volta à tona. “Não vejo necessidade de, a essa altura da vida, minha mãe saber sobre a morte dele. Ela pode entrar em depressão”, diz.

Maria José teve 22 filhos, mas só 13 chegaram à vida adulta. Expedita, de 73 anos, é quem está cuidando atualmente da mãe. “Somos todos escadinha e com diferença de meses”, conta. Ela também pegou a Covid-19, mas teve sintomas leves, como cansaço. “Eu achei que era por estar na correria cuidando de minha mãe e de minha irmã, de 71 anos, que tem Alzheimer. Mas, não, era corona também. Hoje estou boa e não sinto mais nada”.

Casos como o de Maria José e Expedita não são tão raros como se imaginava no início da pandemia. Quando a doença chegou ao Brasil, no começo de março, a experiência e os dados de outros países apontavam que o grupo de pessoas acima dos 60 anos deveria ser considerado de maior risco e, portanto, com cuidados ainda mais intensos de isolamento. Os meses seguintes por aqui mostraram que a preocupação tinha que ser intensa mesmo. Dados de uma pesquisa divulgada pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social) indicam que as taxas de mortalidade do coronavírus entre pessoas com 80 anos ou mais são 13 vezes maiores do que na faixa de 50 a 55 anos. Ela aumenta 75 vezes quando comparada com o grupo de 10 a 19 anos de idade. No entanto, mesmo com a alta porcentagem, muitos casos provam que o resultado positivo para a Covid-19 não é determinante para nada. “Não podemos considerar que uma pessoa acima dos 80 anos, se ficar doente, vai morrer. Quem sabe envelhecer é quem tem a capacidade de recuperação completa. E o estímulo faz toda a diferença na recuperação do paciente depois do hospital”, afirma a infectologista Ho Yeh Li, coordenadora da UTI de doenças infecciosas do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Foi o que viu no dia-a-dia a enfermeira e gerontóloga Eliana Elvira Pierre Lima no pior período da pandemia em São Paulo. Ela trabalhou durante três meses no hospital de campanha do Anhembi. “A maioria dos idosos que eu vi passarem por lá saíram”, conta. Segundo ela, um dos protocolos da cidade de São Paulo era tirar os suspeitos ou os contaminados pela doença das instituições de idosos e levá-los para hospitais de retaguarda, como o Anhembi, um dos que se tornou referência. Especialista em cuidados integrativos e autora do livro “Cuidador de Idosos” (Editora Senac), Eliana tem 36 anos na profissão, mas diz que, mesmo com toda sua experiência, muitas vezes se questiona se foi real tudo isso que aconteceu. “No começo foi assustador. Nunca vou me esquecer. É um sentimento indescritível para quem passa pela doença e para quem trabalha com isso. Mas, ao mesmo tempo, ver pessoas de 90, 100 anos saindo de alta, dava gás e força pra gente continuar”.

A resposta está nos genes?

E como explicar esses casos de pessoas acima dos 100 anos que sobrevivem à doença ou que, muitas vezes, são até assintomáticas? Uma das respostas para isso pode estar na genética. “O fato de essas pessoas de mais de 100 anos serem saudáveis e terem passado por um vírus como a Covid-19 indica que elas têm muitos genes de proteção, ou seja, são altamente resistentes às agressões do ambiente”, explica a geneticista Mayana Zatz, diretora do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano (CEGH-CEL) da Universidade de São Paulo (USP).

Mayana lidera um grupo de cientistas que vêm pesquisando esse assunto e os resultados poderão responder à questão de por que algumas pessoas desenvolvem formas graves do novo coronavírus enquanto outras ficam assintomáticas. O estudo, uma parceria do HUG-CELL com a Faculdade de Medicina da USP, pretende abordar cerca de 20 mil pessoas. Entre elas, idosos com mais de 90 anos que tiveram sintomas leves ou nenhum sinal da doença.”Há muitas variantes genéticas que estão só aqui e não nos bancos internacionais, que geralmente são de europeus. Nós temos essa mistura étnica. É muito importante termos um banco de dados específico da nossa população”, afirma a geneticista.

Conhecer as variantes que estariam relacionadas ao novo coronavírus pode permitir, por exemplo, identificar quem tem genes de risco e priorizá-los em campanhas de vacinação. Agora, os pesquisadores estão em busca de centenários e gêmeos que convivem no mesmo ambiente para recolher o material genético e trazer respostas importantes também sobre o assunto. “Estamos na fase de coleta das amostras, que é um trabalho enorme. Depois disso, vamos fazer o estudo genético, e como esses testes custam caro, analisar grupos grandes barateia o processo”, explica.

Uma das voluntárias da pesquisa foi Anna Maria Braga Frontini. Aos 87 anos, ela foi contaminada pela Covid-19 junto com outras cinco pessoas da família, com quem ficou confinada durante um período da pandemia na praia, no começo de julho, e apresentou sintomas bem leves. “Fui a última a saber que tinha sido contaminada. Uma noite, acordei com muita dor na perna. Telefonei para uma médica que me orientou a tomar um remédio e me pediu alguns exames de sangue”, conta. O primeiro resultado deu negativo, mas como as outras pessoas já tinham confirmado o contágio, Anna Maria decidiu refazer o exame em um laboratório. Esse deu positivo. “O que eu senti foi falta de olfato e paladar, tudo ficou meio amargo, e um cansaço”. Hoje, está totalmente recuperada. “Eu não tinha nenhuma doença anterior, era do grupo de risco apenas por conta da idade”. Nascida em Santos, ela sempre praticou muito esporte e manteve isso como rotina constante até antes da pandemia. “Brinco que sou conservada no sal. Não tinha medo da doença, apenas pensava que, se eu morresse, deixaria tanta coisa ainda para viver para trás”.

Essa era a mesma sensação de Olga Albino Palhares, de 84 anos, que, diferente de Anna, não apresentou nenhum sintoma. “Nem vi a doença passar”, diz. Ela só foi fazer o teste porque o filho Carlos Alberto Palhares, de 65 anos, foi contaminado pela Covid-19 e, com muita dificuldade de respirar, precisou ser internado por 30 dias. “Nunca vou esquecer como ele ficou. Aquela pessoa forte que, de um dia para o outro, fica sem força para nada. E ainda tem gente que fica querendo brincar com isso, abusando”. Olga fez dois testes rápidos de farmácia que detectaram a presença de anticorpos, ou seja, ela já tinha passado pela doença. Mesmo assim, fez o PCR para confirmar se ainda estava com a Covid-19, que deu negativo. “As pessoas ficam abismadas quando eu falo que não senti nada”.

Para ela, um dos segredos de sua saúde muito forte é a alimentação. “Eu me preocupo muito com isso. Tem que se alimentar bem, né?”. A alimentação não evita o Coronavírus, mas é um fator muito importante para deixar o organismo mais forte e protegido. “A impressão que eu tenho, em casos que tenho visto, é que existe o componente genético que foi influenciado, mas ele depende muito mais do grau de nutrição e de função cardíaca, respiratória que o idoso tem na vida. Ou seja, da quantidade de doenças que ele têm e como as tratou”, explica Wilson Jacob Filho, chefe do Departamento do Geriatria do HC e Professor Titular de Geriatria da Faculdade de Medicina da USP.

Quem são os superidosos?

Com a expectativa de vida aumentando, novos nomes foram criados para diferentes faixas etárias. Provavelmente, você já deve ter escutado o termo superidosos. Mas quem pode ser chamado assim? “Aquelas pessoas que têm acima de 110 anos”, explica o geriatra.

Segundo ele, com mais pessoas envelhecendo, mais possibilidade de envelhecer por mais tempo. “Os fatores genéticos são responsáveis por 25% das condições de envelhecimento e os comportamentais – que se referem a meio ambiente e hábitos de vida – pelos outros 75%. Mas esses são números mágicos, que não se podem levar ao pé da letra”, diz o especialista. Isso significa que qualquer pessoa pode chegar aos 110 anos? Nem sempre. “Eu apostaria muito mais em uma pessoa de 100 anos completar 110 do que uma de 60 completar 110, por exemplo. Alcançar um determinado patamar é uma qualificação para chegar ainda mais longe”.

Ponto que a infectologista Ho Yeh Li também ressalta em vários casos de pacientes que se salvaram da Covid-19. “Temos que aprender a envelhecer e esse processo deve começar cedo. Pensar o que eu quero com 80 anos. Isso faz toda a diferença”, afirma. E isso inclui, além da alimentação e da rotina de atividades físicas e cognitivas, encontrar meios de fazer novas conexões.

Olga entende muito a importância disso e se manteve ativa mesmo em casa durante o período de isolamento. “Ainda faço muita coisa que jovem não faz”, diz, rindo. E isso inclui continuar passando a roupa, trocar panelas de lugar “para distrair” ou “algum joguinho para passar o tempo”. E mesmo não tendo sentido nada com a doença, ela manda um recado para quem está flexibilizando nos cuidados preventivos, incluindo o distanciamento social: “Quem viu o que acontece com quem pega esse vírus, vai entender a importância de se cuidar. Já peguei, mas ainda continuo dentro de casa. É importante não abusar. Precisamos ter um pouco de educação. Se estão falando que temos que ficar em casa, colocar a máscara, vamos respeitar. Temos que pensar na gente e no outro”.

Fonte: Marie Claire