Correio dos Campos

A dor dos outros

*Por: Daniel Medeiros - Doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo
17 de agosto de 2020 às 18:00
(Foto: Divulgação)

Hannah Arendt dizia que a “bondade só pode existir quando não é percebida, nem mesmo por aquele que a faz; quem quer que se veja a si mesmo no ato de fazer uma boa obra deixa de ser bom.” A bondade é uma atitude que fica presa no corpo do autor – que não se reconhece como tal – e seus efeitos vão sendo espalhados sem assinatura, sem indicação de origem. Da mesma forma, a dor que sentimos também não é algo compartilhável com o mundo. Não há como expressá-la sem se valer de muitos subterfúgios e, mesmo assim, quando tentamos, o resultado é só uma tênue sombra do que foi vivido.

A dor que se anuncia é a expressão de algo tão subjetivo, tão próprio, tão privado (é uma privação), que não há como reconhecê-la naquilo que se diz ser ela. Toda manifestação pública da dor tende a se tornar algo caricato, o ricto e os gritos e os movimentos do corpo chegam a causar um certo desconforto e afastam as pessoas – ou as aproxima, mas por curiosidade. Não há nada que se possa dizer diante da dor dos outros e quando, mesmo assim, falamos, tudo parece menos do que o mínimo necessário.

É estranho, mas mesmo quando temos consciência de que falar não é necessário, não conseguimos refrear a lamentação pela dor alheia, assim como também agradecer pelos atos de bondade. É difícil compreender e aceitar que só é possível comunicar o que já experimentamos e a dor não se traduz por palavras ou gestos convencionais. O silêncio é o único discurso possível da dor.

Na pandemia, os noticiários informam diariamente sobre os mortos e sobre o drama dos casos graves, além das reportagens ouvindo os que lutam contra a doença. Há os que exigem que também sejam publicadas informações sobre as curas e, com isso, tentam forçar uma normalidade que permitiria a retomada das atividades laborais. Mas nenhum desses esforços de informação chega perto do que se passa com as pessoas afetadas, porque o que se passa com elas não é comunicável.

Os números, alinhados, sobrepostos, expostos em percentuais, emoldurando gráficos e mapas, falam sobre algo voltado para orientar as políticas públicas e as ações de prevenção. Mas não alcançam o que sentiu o homem que morreu sem ar, a filha que não viu o pai voltar para casa, a mãe que enterrou o filho sem poder dar um último abraço. Essa energia da dor satura o ar, entranha-se nas ranhuras das casas, percorre centenas de quilômetros, em todas as direções e, no momento em que falamos sobre elas, desvanecem-se. Faz-se noticiário das mortes. Não da dor.

Quando o jornal diz que agora são cem mil os mortos, não há um salto de dor, uma elevação do grau do sofrimento, como se a cada mil, dez mil, a dor também se intensificasse. Esses números deveriam gerar raiva, inconformismo – esses sim, sentimentos úteis, porque instruem nossas decisões, quando a razão identifica os responsáveis pelos erros públicos que contribuíram para essa carnificina. Joseph Stalin, um dos maiores assassinos da humanidade, dizia que uma pessoa morta era uma tragédia; um milhão de pessoas mortas, uma estatística. Ele entendia de violência e de como os números são capazes de escondê-la. É no drama pessoal, privado, único e irrepetível que a dor ecoa.

Apenas os poetas, os artistas, os músicos, conseguem trazer à superfície um vislumbre de sua face. Por isso, eles deveriam, pelo menos alguns dias na semana, substituir os jornalistas de ares sisudos, e recitarem um verso, assobiarem uma canção, esboçarem uma cena em giz ou carvão. E depois deixar o silêncio conectar as dores dos outros às nossas próprias experiências, momento em que se revela o indizível, que precisamos compreender e suportar, para continuarmos vivendo.